terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

A arte da apropriação

Para os fotógrafos, cujos pontos de vista nos desvendam admiráveis mundos novos.

Archidy Picado Filho

Kant, filósofo alemão, esteta-geógrafo, dizia – como outros – que “Deus” é o único Verdadeiro artista, uma vez que retira do fundo de Sua incriada vitalidade a “matéria”-prima com a qual realiza Suas criações.
O conjunto cósmico das formas orgânicas e inorgânicas que compõem a Natureza material do Universo, segundo Kant (entre outros), é expressão inequívoca da força infinita da Vida, de Sua inimitável criatividade, uma vez que única a doar-Se às criações das criaturas que habitam o vazio. Os seres Humanos, quando plenamente realizados, são Suas mais perfeitas manifestações, artístico-organicamente constituídas à obtenção das condições à sensação da Vida, Sua presença essencial e, diferentemente dos outros espécimes animais, autoconsciência de sua própria existência e finalidade.
Para a maioria das culturas religiosas somos “a imagem de “Deus””, não tanto no que diz respeito à forma de Seu ser (uma vez que, em Si mesmo, “Deus” é amorfo, ou seja, essencialmente sem forma), mas basicamente no que diz respeito à capacidade de, como Ele mesmo parece fazer, imaginar e, através dos recursos da Arte (inequivocamente reconhecida como instrumento de objetivação de nossa subjetividade), dar sentidos às nossas vidas.
Aos críticos da arte da apropriação, principalmente como fundamentação das obras virtuais atualmente realizadas com os recursos da computação gráfica (principalmente no Cinema, moderníssimo instrumento também das artes plásticas), penso que têm parte da razão os materialistas: essa nossa inevitável inclinação a nos apropriar dos materiais pré-existentes começara ainda quando, pré-históricos, lançáramos mãos dos recursos naturais à transformação da natureza selvagem ao desenvolvimento de nossa inconclusa civilidade.
Os desenhos pré-históricos (já um tanto estilizados) foram realizados com base na observação apropriativa e reprodução plástica das formas naturais existentes – quer tenham sido animais, paisagens ou “homo-sapiens”. Ações inteiras foram reproduzidas pelos pintores pré-históricos a partir de suas várias apropriações, enquanto outros, munidos de outros talentos, tratavam de manipular a argila à construção de recipientes vários, ou ainda absortos na tarefa de desenvolver uma primeira colher, extensão de nossas mãos, símbolo de nossa tendência à superação de uma primitiva condição selvagem.
Assim, a mimesi é, em nós, artistas, “dublês de Deus”, até onde compreendo, impulso natural à imitação e, portanto, nossa maldição. Entretanto, ao artista coube sofrer a consciência de sua submissão reprodutiva à pretensão de certa independência criativa. Enquanto ideal Humano, realizar o “Novo” é nosso objetivo, ou nossa objetivação (uma vez que já o que chamamos de “Humano” é ainda um aspecto essencial do Novo irrealizado). Porque na Verdade queremos ser sempre tão originais quanto o “Deus” que muitos acreditam responsável pela realização de tudo. No âmbito da evolução expressiva das artes visuais (que, graças à influência da Igreja e suas ideais “visões do céu”, superou sua função de apenas ser artefato de reprodução das formas pré-existentes na Natureza – ou dos valores da sociedade eclesiástica de outrora), creio que a representação do Abstrato foi o ponto final de nossas tentativas de exprimir nossa “independência” à conquista daquilo que cremos ser “Original” na Pintura: nos Estados Unidos, uma exposição abstrata de telas em branco concluiu nossas tentativas de representação máxima do amorfo Absoluto. Entretanto, foram ainda suportes de madeira e algodão, além de velhos tubos de tintas e pincéis, os recursos materiais com e sobre os quais representamos o Absoluto abstrato. Ou seja: nossa “originalidade” ficou limitada à expressão do conteúdo estético-filosófico das obras em questão – diga-se de passagem, o principal. Então, porque não fomos originais na concepção de seus suportes de então, nossa obsessiva pulsão mimético-criativa nos fez voltar a dedicar todas as nossas forças à materialização de novos equipamentos, de novos instrumentos à continuidade de nosso desejo de originalidade. Nesse processo, não tenho dúvidas que, a despeito dos resultados estéticos obtidos com eles, tais equipamentos são em si mesmos verdadeiras obras de Arte, uma vez que formas originalmente produzidas por nossa imagética mimético-criativa subjetividade.
Olhe para quaisquer objetos a sua volta produzidos graças ao nosso potencial criativo. O que, afinal, significam sem os conceitos, utilitários ou não, que lhes atribuímos? Nada – a não ser talvez, ainda enquanto meras idéias, fundamentos de Verdadeiras obras de Arte, a despeito de que, para que existissem, tenham sido formados a partir dos recursos naturais disponíveis, na percepção das três formas fundamentais da Geometria (esfera, cubo e cone) e submetidas à produção e reprodução industrial. Mesmo assim, idealisticamente, prováveis exemplos de nossa desejada “libertação” da tirânica condição de submissos arremedos de Criador.

Publicado no Jornal dos Municípios, João Pessoa, PB, Julho de 2004.

Sobre "Deus"

Quando questionados sobre as “imperfeições” do mundo diante de “Deus”, na Verdade, como observei aqui, apenas outro nome para aquilo que também conhecemos como “Vida” (segundo a razão ocidental, “um contra-senso” – já que muitos dizem o mundo reflexo da perfeição divina), os orientais respondem que “tudo está como deve ser” com aquela tranqüilidade aparentemente apática que lhes é peculiar, convictos de que os séculos, capítulos com os quais nos habituamos a demarcar o Eterno, se encarregarão de nos revelar toda Verdade que queremos saber – e mesmo aquelas que não queremos saber.
Depois de outras tantas sensações e leituras, nas reflexões sobre o valor essencial da Vida e Sua finalidade fundamental penso que bastam determinados sentires particulares, que se coadunam, também, às conclusões de certos filósofos, quer ocidentais ou orientais, antigos ou contemporâneos, sobre o objetivo primeiro e último da Vida: como nos fazer andar é o objetivo das pernas – sem que a elas importe para onde voluntariamente nos encaminhamos – viver, apenas viver é a finalidade essencial da Vida, embora interfiramos em Seu curso (e exclusivamente naquilo que nos diz respeito) quando Lhe atribuímos qualquer outra finalidade que, por este ou aquele motivo, particularmente nos felicite ou angustie.
Porque descobri que estamos aqui como fundamentos da plena Consciência que a Vida, através das gerações que engendra e ainda engendrará, deverá ter se Si mesma à realização total de Seus muitos sentidos.

E-mail para um amigo

Caro B.: você não faz, em absoluto, o "trabalho sujo" - a menos que tenhamos considerado inversões de valores capazes de por novamente “o mundo de cabeça para baixo". Nada é mais digno do que lutar por exemplos de integridade Humana, de solidariedade, de Amor, de Justiça, o que requer daqueles capazes de produzi-la generosas doses de obstinação a práticas dos melhores verbos tornados carnes. Mas, por outro lado, a história mostra o que acontece àqueles que erguem bandeiras onde estão estampados os próprios rostos: podem chegar à glória do reconhecimento e gozo de suas benesses inevitáveis, mas frequentemente são perseguidos e, quando não assassinados, forçados a qualquer tipo de exílio que, no fim, inevitavelmente os leva à tristeza, solidão e abandono. Hoje, como nunca, é fácil eliminar uma pessoa (sem que seja necessariamente preciso matar-lhe o corpo), mas nunca será fácil eliminar as boas idéias que motivam as pessoas a reagirem a injustiças e reconquistarem o que lhes é devido. O problema é saber exatamente o que nos é devido, e há muitos desejos e necessidades historicamente inventados e engendrados por um complexo que nos quer tão transitórios e descartáveis como os valores que produzem a nos seduzir e cegar. Daí minha preocupação em considerar os "benefícios" que nossos políticos (entre outros) têm - ou usufruem - graças a suas posições "privilegiadas" na sociedade, seus poderes e influências a determinação de nossos destinos, quase sempre catastróficos. Particularmente, por ter conhecido considerável parte representativa de outras realidades ao redor do mundo, entre as quais políticos de altos escalões de governos internacionais (entre eles um primo colecionador de títulos, através de quem parte desse mundo me chegou), perdi o interesse pela conquista de certos valores e posições sociais cultuados pela maioria dos que sonham pisar em tapetes vermelhos e possuir diamantes. Por tabela, não creio necessário estar em guerras para ajudar outros a conquista da possibilidade de que possam usufruir deles. Sei que você vai dizer que não se trata de lutar por tapetes vermelhos ou diamantes, mas apenas por dignidade e o “pão de cada dia”, direito de todos; e eu vou dizer que também a história nos mostra que a fome dos “homens” não tem limites. Além disso, como ainda no passado nosso atual mundo político é absurda e estranhamente perverso! Sou incapaz de compactuar das motivações dos que ainda ambicionam participar dele.

Palavras que faço minhas

PARA LER E PENSAR

“A loucura é algo raro em indivíduos – mas em grupos, partidos, povos e épocas é norma”. Friedrich Nietzsche em Além do Bem e do Mal.

“No momento em que decidimos levar a sério a verdade e a seguir nossa consciência, é bastante difícil tomar um partido sem tomar também o outro”.

“Durante minha adolescência, sofri as alternâncias entre as verdades do coração, que respondem a todas as minhas insatisfações ao me anunciar o amor, a redenção e a salvação e as verdades da razão, que satisfazem meu ceticismo e meu senso de relatividade”.

“Somente um grande romance consegue exprimir as múltiplas dimensões da experiência humana”.

“Descobri que toda história do passado sofre a retroação das experiências do presente, que lhe dão uma iluminação ou um obscurantismo particular. Isto me levou a pensar que não há observador puro, daí o observador/conceituador deve se observar e se conceber em sua própria observação”.

“Desenvolvo, assim, meu saber e o integro em um marxismo que se alarga até que não seja nada mais que uma capa, em que se opera a gestação inconsciente de minha concepção da complexidade, que o fará surgir e tornará Karl Max limitado”.

“A cultura humanística e a cultura científica separadas são duas subculturas. Hoje, compreendo que a cultura é a junção do que está separado, e ouso afirmar que milito dessa forma pela cultura, isto é, pela comunicação entre o que está fragmentado. (...) A cultura é a policultura”.

“A cultura não é acumulativa, ela é auto-organizativa.(...) A cegueira dos espíritos fragmentados e unidimensionais deve-se a falta de cultura”.

Edgar Morin em Meus demônios.

Texto sobre a produção do cd "Antes que o disco voe", do poeta-compositor Zé Trovão, do qual participei como designer e músico.

Sobre “Antes que o disco voe”

Archidy Picado Filho


Os sonhos, mesmo que enfrentemos eventuais pesadelos na trajetória de suas realizações, são fundamentos das artes à geração das primeiras manufaturas que originaram tudo o que a Natureza não nos legou. Exemplos do que pode fazer a união da criatividade, da vontade, da determinação e da amizade, que também cercou o poeta-compositor Zé Trovão à expressão daquilo que de mais emocionante belo lhe tem legado suas inspirações.
A Música nos dá grandes exemplos de como promover às harmonizações necessárias ao usufruto da Beleza. E a Música também nos ensina que podemos nos harmonizar nos contratempos, forças indispensáveis à geração das tensões e explosões às muitas manifestações da Vida – ou Daquilo, Daquele ou Daquela a quem também Zé Trovão homenageia em sua música Deus Se auto-define.
Com toda variada experiência musical presente no disco, é entre ritmos como regge, bolero, um fado que se transforma em samba – ou um “Sanfado”, como Zé Trovão a intitulou – um galope com influências de Pink Floyd, músicas nordestinas e participações do Quinteto da Paraíba que ele nos disponibilizou parte de seu talento a apreciação daqueles que sabem distinguir a boa música.
E que por muito tempo seu vozeirão de Trovão possa ainda cantar a fazer-se ouvir aos quatro cantos do mundo.

Texto enviado por e-mail

A um suicida

Archidy Picado Filho

“Por incrível que pareça, esse cara disfarçadamente humorado nos últimos dias está à beira de um suicídio. Falo sério. Preciso de ajuda. Posso até sentir vergonha depois, mas está insuportável viver. Ajudem-me.” Encontrado em minha página de recados do Orkut.

Caro X:

Notei que você me enviou uma série de e-mails nos últimos dias. Infelizmente, uma das razões de nossa vontade de morrer tem fundamento: perdemo-nos no caminho da construção de nossos paraísos e há muitos perversos no mundo (ou ignorantes?). Há muitos que exercitam as artes do mal a nos enviar vírus devastadores, por exemplo, que aniquilam parte considerável dos registros de nossa história pessoal, arquivados em nossos micros. Por isso não atendi prontamente ao seu apelo, pela forma impessoal – (@%@%@*&...) – como você se apresentou em meu e-mail.
Apesar de também às vezes considerar inútil guardar minha história pessoal (já que, no fim, como nossos primeiríssimos pais, irmãos e suas histórias pessoais, tudo virará pó), seu problema é complicado resolver porque é um problema de suas relações íntimas, essenciais, subjetivas, pessoais com o mundo.
O que você considera, pode considerar ou não valioso no meio de toda “falta de sentido” da presença de tudo no vazio determinará sua permanência nessa imensa e inescapável fábrica da Criação chamada “Vida”. Ou, por outro lado, lhe estimulará a encontrar uma forma eficiente e indolor de “voltar” para o vazio de onde, em minha modesta opinião, muitos nunca deveriam ter eclodido.
Entretanto, pus as aspas na palavra voltar porque, pessoalmente, não acredito que possamos “voltar” a lugar algum. Se você procurar sentir bem, onde (ou quando) estiver que estejamos, verá que somente vamos para frente; mesmo que, algumas vezes, precisemos estar caminhando para trás, e somente será assim ao impulso de novos saltos para o futuro.
Penso que a morte não é nada e que, por isso, ela não sucinta em você (ou em mim) grandes dificuldades de enfrentamento. Não sei sobre o que exatamente lhe motivou o desejo de “cair fora da Vida”, mas creio que nosso maior problema a motivações existenciais é compreender a Vida mesma e Sua insistência em Se fazer presente no vazio, através de tudo e de nós. Porque entre uma de Suas infinitas manifestações, e outras – das quais, ao que o Tudo indica, não podemos nos dar o direito de escapar – temos que enfrentar nossa própria ignorância e nossas próprias dores, sempre em relações com a ignorância e as dores dos outros (ou das dores que consciente ou inconscientemente possam ainda nos provocar), até que possamos sentir que, de fato, muitos temos usufruído mais prazeres do que dores durante nossa estada neste mundo (apesar dos verdadeiros infernos onde hoje vivem outros, de outras bandas do mundo).
Apesar de nossos desejos de ajudar os próximos (hoje, também com a ajuda da Internet, cada vez mais próximos), no fim (e por princípios) só podemos ser íntimos agentes de nós próprios no enfrentamento de nossas dores, resultados de nosso estado de espírito (ou, mais acertadamente considerado, do estado daquilo que chamamos Espírito em nós) em nossas relações com o mundo.
Poderia ainda escrever muitas coisas cuja intenção seria convencê-lo (como convenci a mim) de que, como muitos, você precisa olhar-se no espelho, bem de perto, a procurar ver refletido em seus olhos a janela de seu quarto, ou a porta de sua sala, por onde o mundo também entra e sai. Porque então talvez você, através dos cinco sentidos que nos auxiliam a sensação da Vida, perceba-se também existente à tarefa de, como “ínfimos” partícipes da Criação, gerar outros sentidos melhores à administração da sua vida e, por tabela, da Vida de tudo o que passou a existir no vazio.
Grande abraço.

Archidy Picado Filho

Parte do texto que compõe o prólogo de meu livro "Minha querida Joana", em fase de produção.


"(...)- Olha – disse o bispo Pierre puxando o amigo para mais perto de si pelo hábito, como se alguém ali estivesse a querer ouvir o que diria. – Sugiro que te confesses ao Senhor e benze-te a pedir-Lhe perdão ao término da leitura de cada parágrafo.
- É tão grave assim?
- Saberei quando ouvir o que tu tens a dizer sobre o assunto. Boa noite. E que Deus continue a guiar teu bom senso.
Quando o bispo Pierre saiu distribuindo benzas o abade Auguste finalmente voltou a sua solidão.
Fechou a porta, pôs os óculos de lentes grossas e começou a ler o misterioso livro que lhe trouxera o irmão Pierre.
Antes de terminar o primeiro parágrafo, porém, ele já havia se benzido três vezes".